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A Coisa by untitled2
outubro 14, 2006, 5:09 am
Filed under: Literatura


A Coisa, por João Barreto

A Coisa, livro de Stephen King, um dos mestres dos horror contemporâneo, foi originalmente publicado em 1987, quase vinte anos atrás. Será que ainda assusta? Agora, depois da terceira leitura, posso dizer que sim. Não só ainda assusta como o drama humano encoberto pelo sobrenatural da narrativa permanece atual e isso confere inegáveis marcas de universalidade à narrativa.

Vamos à sinopse. Em uma pequena cidade do Maine, nordeste dos Estados Unidos chamada Derry, um crime muito bizarro aconteceu em 1957, abrindo uma temporada de crimes tão ou mais bizarros ainda, que durou todo o verão de 1958. A Coisa começa com o assassinato brutal e misterioso de George Denbrought, em 1957, que brincava com um barco de papel nas corredeiras da sarjeta criadas pelas últimas chuvas fortes. George, até onde se sabe teve um de seus braços arrancados por um palhaço monstruoso que estava dentro do bueiro no qual o seu barco de papel sumiu.

O crime permaneceu inexplicado, mas Derry é uma cidade bastante peculiar na qual coisas hediondas acontecem com muito mais frequência do que em qualquer outro lugar dos Estados Unidos. Apesar de pequena, tem a maior taxa de desaparecimentos, especialmente de crianças. As pessoas também morrem em Derry de forma violenta com muito mais frequência e os seus corpos mutilados reaparecem nos esgotos. E ninguém se importa. A população parece simplesmente não perceber isso. Mas sete garotos, os nossos protagonistas, um dos quais, irmão da primeira vítima de 57, que abre o livro, percebem que em Derry há algo de diferente no ar: como um cheiro de zoológico, como se algo, algum ser, estivesse atuando em Derry há muito, muito tempo, caçando e se alimentando da sua população. Bill Denbrought, Eddie, Richie, Beverly, Stanley e Mike, tentarão combater a criatura que mora em Derry desde que Derry é Derry e que se alimenta de crianças a cada vinte e sete anos mais ou menos. Essa criatura, a Coisa do título, tem muitos rostos e sempre reflete o maior medo de sua vítima, ou seja, o leitor pode em qualquer momento se deparar com qualquer tipo de monstro importado de qualquer outra narrativa de horror. Esse recurso aumenta a intertextualidade da narrativa, abrindo, obviamente, muitas possibilidades que viabilizem a construção do suspense e do medo no leitor.

O interessante é que quem pega um livro desses na livraria, lê a sinopse, só o leva para casa se for alguém dado a narrativas de terror ou horror. Não nego que seja uma narrativa de horror, estruturada sob a égide das regras que regem o gênero ou que escape à lógica do susto, asco e do monstro dentro do armário ou debaixo da cama. Não, A Coisa não se exime disso. Pelo contrário, por vezes é explicitamente violento, trazendo ao leitor imagens das mais cruéis ou nojentas. Mas além desse tipo de estratégia, se cavarmos um pouco mais, chegaremos à fábula narrada: que é a da amizade da infância, ingênua e verdadeira como nenhuma outra e do fim da infância e da perda da fé na magia e no sobrenatural que o envelhecimento implica. Os setes garotos protagonistas de A Coisa, o Clube dos Perdedores, são unidos pelo seu desajuste social, tema caro a Stephen King e já abordado em seu primeiro livro Carrie. Um dos garotos tem asma, outro é gordo, temos ainda o gago, o negro, o judeu, a garota pobre e o hiperativo de óculos. O vínculo entre eles é solidificado pela presença maligna que assombra a cidade toda: a Coisa do título do livro, cuja função narrativa é fornecer o cimento à união dos sete, afinal é contra ela que o Clube dos Perdedores vai lutar. Claro que tudo isso recheado de muito sangue e tripas, senão não ia ter graça. Quem quiser muita profundidade que vá ler Saramago, Joyce ou sei lá, algum manual de mergulho do Jacques Costeau.

A memória é outra tema universalizante posto em discussão por meio da narrativa de A Coisa. A estrutura do romance é bastante rígida e formal, imitando processos mnemômicos com intensa utilização de itálico pra marcar voz interior dos personagens e seus pensamentos. A voz narrativa saltita entre os sete protagonistas nos anos cinquenta e nos anos oitenta, quando se situa a outra metade do livro. O itálico e parágrafos terminando abruptamente e sendo emendados em outros retratando outro lugar e outro tempo são empregados à exaustão com o intuito de confundir o leitor e fundir anos cinquenta e oitenta em um só contínuum, que é próprio da narrativa das nossas memórias. O recurso é bastante funcional e proporciona passagens bastante criativas. O livro é estruturado em cinco partes mais epílogo, intercalados por cinco interlúdios passados eminentemente no presente mas que contam parte da história da fictícia Derry. Os interlúdios correspondem às entradas no diário pessoal de Mike Hanlom, dentre os sete garotos do Clube dos Perdedores, o único que permaneceu em Derry como vigia, esperando que os assassinatos recomeçassem para que os garotos tentassem finalmente exterminar o monstrengo de mil faces. Os outros tentaram construir vidas o mais longe possível do Maine.

A Coisa levou quatro anos para ser terminado e é dedicado aos filhos de Stephen King: “Crianças, ficção é a verdade dentro da mentira e a verdade desta ficção é bastante simples: a magia existe”. É sem dúvida uma obra épica não por extensão mas por estrutura, sua narrativa principal acontece em menos de uma semana. E quando você termina o livro, você pode ficar com aquela sensação de acordar do pesadelo logo depois de ter resolvido e e entendido a sua lógica truncada. Fica a sensação de ter atravessado anos, muitos anos. É chato terminar o livro, deixá-lo de lado a espera de uma outra oportunidade de lê-lo novamente. Eu sinto isso e não apenas porque o reconheço pelo que é, um livro escrito de forma dinâmica e para ser consumido como tal. Aqui e ali a sua estrutura narrativa mostra o seu esqueleto, mas isso é da terceira apreciação em diante. A primeira te deixa acordado de noite e triste pela manhã porque os amigos envelhecem, a infância acaba e a vida adulta tem que ser encarada com as suas felicidades, os seus percalços e responsabilidades. A Coisa demonstra a emergência do senso de responsabilidade nas crianças que escapam do monstro. São unidas para derrotá-lo e se isso acontecer, se conseguirem derrotá-lo, então acabou. Se não lutar o monstro te devora, se lutar e vencer o monstro, você envelhece e fica chato.

EXCERTO:

“É possível uma cidade inteira ser assombrada?
Assombrada como se supõe que sejam assombradas algumas casas?
Não apenas um único prédio nessa cidade, tampouco a esquina de uma única rua, uma única quadra de basquete em um único parquezinho, com a cesta sem rede projetando-se ao por-do-sol como algum obscuro e sangrento instrumento de torura, não apenas uma área – mas tudo. Tudo quanto houver nessa cidade.
Pode ser possível?
Ouçam:
Assombrado: ‘Visitado frequentemente por fantasmas ou espíritos.’ Funk e Wagnalls.
Assombrando: ‘Retornando à mente com persistência; difícil de esquecer.’ Ditto Funk e Friend.
Assombrar: ‘Surgir ou infestar com frequência, em especial como fantasma.’ No entanto, ouçam! – ‘Lugar assiduamente visitado: toca, antro, estância…’ O itálico é meu, naturalmente.
Ainda mais uma. Esta como a última, é uma definição de assombrado como substantivo. É ela que de fato me assusta: ‘Um local o nde os animais costumam alimentar-se.
Animais como os que surraram Adrian Mellon e depois o jogaram de cima da ponte?
Animas como o que estava à espera, embaixo da ponte?
Um local onde os animais costumam alimentar-se.
O que está se alimentando em Derry? O que está se alimentando de Derry?”


3 Comentários so far
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Eaí, blz? Passei por aqui e não podia deixar de elogiar o post, me interessei bastante pelo livre inclusive!
Parabéns pelo site =)
Até! o/

Comentário por Renan

lodine

news

Trackback por lodine

oi, td bem?

eu vou começar a ler o livro agora, então só li o primeiro e os três ultimos parágrafos da sua crítica, qd percebi q naum tinha spoiler… rs

fiquei bem animada pra começar a ler, parabéns!

Comentário por rebecca




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